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A técnica do ator e o respeito à individualidade

 

por Leandro de Almeida Bertola [1]

Resumo: O artigo estuda algumas concepções teóricas e práticas dos diretores Antonin Artaud, Bertolt Brecht e Constantin Stanislavski e como a técnica será aplicada em respeito à individualidade e à subjetividade de cada profissional. O trabalho traz apontamentos acerca da vida humana, antes de adentrarmos no terreno da criação artística, e ilustra a dificuldade de distinguirmos os métodos utilizados.

Palavras-chave: Ator. Técnica. Individualidade. Artaud. Brecht. Stanislavski. Artes Cênicas.

Artigo publicado na Revista Eletrônica Intervalo do Conservatório de Tatuí. Edição número 20. Março/2017.

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INTRODUÇÃO

Esse artigo investiga a relação entre as técnicas utilizadas pelo ator e sua individualidade. O estudo transita em alguns pontos teóricos de três nomes do teatro ocidental: Antonin Artaud [2], Bertolt Brecht [3] e Constantin Stanislaviski [4]. É possível eleger uma técnica como sendo mais eficaz do que outra? Através de uma técnica atingimos o mesmo resultado em atores distintos? Os sistemas são excludentes? Para responder a essas perguntas destacamos, em primeiro lugar, que na arte reside a realidade social e a vida humana.

Outro fator é que o ator, antes de ser um profissional, é um ser humano complexo.

Morin (2006, p. 59) delineia a complexidade humana:

O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real, que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a magia, mas também a ciência e filosofia; […].

Ressalta-se ainda que a arte faz parte da essência do ser humano, como bem observa Ostrower (2004, p.09) quando aborda a linguagem artística “[…] todos nós dispomos da potencialidade dessa linguagem e, sem nos darmos conta disso, usamos seus elementos com a maior espontaneidade ao nos comunicarmos uns com os outros.”

Como se vê, o ator, ainda na vida cotidiana [5], antes de adentrar num estado de expressividade (no campo das técnicas), é um ser humano complexo, consubstanciado com desejos, fragilidades, sentimentos, emoções e já se utiliza de linguagens artísticas de forma inconsciente.

É difícil, como se verá adiante, estabelecer um divisor de águas preciso na técnica do trabalho do intérprete. Ademais, existem várias concepções de interpretação e construção das personagens. E, sendo a vida complexa, não podemos restringir a técnica do ator a um ou outro modelo.

1.Técnica e Individualidade

Para a abordagem da técnica e da individualidade vamos nos pautar de três grandes nomes do teatro ocidental: Antonin Artaud, Bertolt Brecht e Constantin Stanislavski. Não esgotaremos os estudos desses diretores, mas sim transitaremos em alguns pontos por eles investigados.

Em Constantin Stanislavski pontuaremos a identificação psicológica do ator com a personagem e a memória das emoções. O ator stanislaviskiano desenvolve um trabalho naturalista de interpretação, prioriza o caráter ilusório da obra e envolve o espectador nas ações dramáticas. Uma das técnicas utilizadas por Stanislavski é o “se mágico”, através da imaginação o ator pensa “como se fosse” a personagem em determinadas circunstâncias dadas. Tanto o “se mágico” quanto a memória emotiva, partem de um exercício mental/cerebral, para num segundo momento ativar canais sensoriais e corporais do ator.

Nos estudos de Bertolt Brecht o foco é o distanciamento [6] e a não identificação psicológica do intérprete com a personagem. O ator brechtiano, em sua relação com a plateia, afasta-se da personagem, com a consequente perda do caráter ilusório da encenação, com o propósito de aguçar o senso crítico do espectador. Podemos dizer que, diferentemente, do sistema Stanislavski, o ator quando se utiliza do distanciamento ele tenta mais mostrar do que viver a personagem.

Em relação à Antonin Artaud o destaque está no trabalho sensorial, intuitivo, corporal, bem como na relação entre ator e plateia. Artaud defendia a quebra da supremacia da palavra em prol do grito, da respiração, do sistema nervoso, do corpo, do visceral. Para ele o ator é um “atleta das emoções” e a sua relação com a plateia não é distante. Todos (ator e público) fazem parte do mesmo ritual artístico.

Não é prudente afirmarmos que uma técnica ou conceito é mais eficaz do que outro e que tal modelo já é ultrapassado. Por exemplo, a memória emotiva na concepção de Stanislavski, às vezes criticada por alguns estudiosos contemporâneos, ainda é utilizada de forma eficiente. O ator precisa, em primeiro lugar, de autoconhecimento e saber o que o estimula, como aguçar os seus canais sensoriais. Sons, imagens, lembranças, exercícios físicos, interagir com o outro, toques, dançar, cheiros, sabores, enfim, o que provoca reações sensitivas no ator? Utilizar das memórias das emoções pode significar um sofrimento exacerbado para uma pessoa, mas para outra pode ser prazeroso e eficiente. A memória emotiva é uma técnica de estímulo a ser encarado sob a ótica individual. Um ator que necessite representar uma personagem que come, simbolicamente, uma maçã, com prazer, mas que na vida pessoal não goste dessa fruta, pode imaginar uma situação pessoal de satisfação, trocar mentalmente a maçã por outra fruta, ou qualquer outra guloseima de que goste e transmitir para a plateia a mesma sensação de comer a maçã representada na cena. Outro exemplo, suponha que em determinada cena o ator precise sentir medo de rato, mas que ele não tenha medo desse animal e não consiga encontrar uma verdade cênica. Poderia então, como uma possibilidade, trocar mentalmente o rato por outra coisa que lhe amedronte. Se ele tiver medo de aranha, pode se imaginar uma aranha e a cena ser ilustrada com o medo do rato. Vê-se que a memória emotiva pode atingir um resultado eficiente.

De qualquer forma, a memória das emoções também pode ser combinada com uma interpretação distanciada no método de Brecht. A verdade é que o ator sempre se distanciará da personagem. A pergunta é: quanto o ator distancia? O ator existe num plano dualista, sendo ele mesmo e representando a personagem. Como o profissional trabalha isso em sua mente e como ele apresenta isso ao público perfaz uma atuação mais distanciada ou menos. Atores que seguem uma linha stanislaviskiana não podem ser definidos como estritamente naturalistas e que vivem com a consciência da personagem o tempo todo. A dualidade sempre existe, mas como ela é vivenciada e mostrada determinará em que sistema o ator está mais próximo. Não podemos ser radicais, o ator transitará em mais de uma técnica em suas composições. Além disso, muitas vezes, não é possível concluir, com absoluta certeza, que espécie de método o ator utiliza. Paulo Autran assim o disse em seu depoimento para Eraldo Rizzo (2004, pg. 32):

[…] Eu acho que é uma coisa muito difícil de dar certo. Então, eu não tenho ideia do que seja o distanciamento. Realmente não tenho. Isso de fazer uma interpretação crítica do personagem, você ao fazer o personagem, você tem de mostrar à plateia não as emoções do personagem, mas sim o que a plateia deve pensar a respeito do personagem. É uma coisa fácil de dizer, mas muito difícil de realizar. Eu tenho visto boas e más interpretações, e não consigo distinguir qual delas é distanciada ou não.

Se incluirmos ainda nessa cumbuca o trabalho visceral de Artaud, observaremos que ele também pode ser complementado aos ensinamentos de Stanislavski e de Brecht. Podemos afirmar, que na concepção criativa de Stanislavksi e de Brecht, a mente, o pensamento do ator prepondera para o início do processo criativo. Já em Artaud o princípio da composição cênica nasce do corpo todo, da respiração, do grito, dos sentidos. Estaria então Artaud em oposição a Stanislavski? A resposta é negativa. Vamos retomar a memória das emoções. A lembrança do ator de um acontecimento trágico ou prazeroso pode desencadear sensações corporais “viscerais”, ou seja, através do pensamento o profissional ativa seu corpo e suas emoções. Estará, portanto atuando com a utilização da memória emotiva (Stanislaviski) e ao mesmo tempo sendo visceral (Artaud).

O caminho inverso também acontece, ou seja, ir do corpo até a mente. Por meio de trabalhos corporais podemos entrar em estados emocionais, uma vez que nosso corpo, como um todo, contém registros emocionais armazenados. O movimento corporal ativará as emoções escondidas nos músculos e órgãos. O ator entrará então em estados emotivos que não são conscientes, nem racionalizados, mas que, num segundo momento, esses estados estimularão o seu imaginário. Isto é, uma representação mais intuitiva e corporal [7] serve de gatilho para ativar a memória emotiva.

Seja qual a técnica que for utilizada é interessante notarmos que em determinados momentos o ator começa a interpretar mais intuitivamente e se deixa levar, assim como nos deixamos ser conduzidos por uma música e dançamos livremente, sem racionalizar os movimentos corporais. As sensações que o corpo nos proporciona, quando nos deixamos levar, aproxima-se de uma representação mais sensorial numa concepção de Artaud. Entretanto, pensando no trabalho do ator, não podemos esquecer que ele necessita possuir o controle total da situação, do espaço cênico, do cenário, de suas ações físicas e de sua relação com os outros atores e com a plateia. Dessa forma, o ator entrega-se, e, ao mesmo, não se entrega, vive transitando entre a consciência e a inconsciência do que representa. Impossível dizer que um ator é totalmente racional/cerebral ou irracional/emocional/corporal. O interprete é uma mistura de técnicas (conscientes e inconscientes) e de suas experiências pessoais.

Por fim, um ponto interessante de se pensar é que cada ator tem sua própria vivência, não se pode transmitir a mesma experiência de um ator para outro. Mesmo que ambos estudem e pratiquem as mesmas técnicas, trabalhem nas mesmas peças, nos mesmos filmes e tenham uma carreira artística semelhante, não se pode dizer que os dois terão a mesma experiência e conhecimentos técnicos, em razão de que cada um já carrega em si sua própria complexidade humana e suas heranças sócio-biológicas. Os caminhos e os estímulos dos atores para se chegarem a um resultado são, portanto, pessoais e singulares, mesmo quando se utilizam do mesmo procedimento. Há uma infinidade de maneiras e possibilidades para se interpretar e construir uma personagem. O ator precisa, primeiramente, de autoconhecimento e de conhecimento das técnicas para saber como utilizá-las em seu beneficio e no beneficio da arte.

2.O alienista sob a ótica de Artaud, Brecht e Stanislavski.

Na montagem de minha Cia de Teatro, Complexo de Actoris, “O alienista” de Machado de Assis [8], por mim adaptado e dirigido por Karina Zimmermann, apesar da dificuldade em se constatar as vezes que tipo de técnica ali está sendo empregada, conforme apontado acima, acredito que juntamente com a diretora, conseguimos mesclar várias vertentes técnicas desses três diretores.

O alienista, Cia Complexo de Actoris. Fotografia: Karen Madeira.
O alienista, Cia Complexo de Actoris. Fotografia: Karen Madeira.

O monólogo conta a história de Dr. Simão Bacamarte que retorna ao Brasil após conquistar respeito em sua carreira de médico na Europa. Aos 40 anos casa-se com Dona Evarista, uma mulher que não era nem bonita e nem simpática, porém daria uma ótima reprodutora. No Brasil o médico passa a dedicar-se ao estudo da psiquiatria e constrói um manicômio, onde acolhe todos os loucos da cidade e região. Machado de Assis dialoga com as fronteiras do que é normal e do que é loucura, e explora, com ironia, o comportamento das pessoas, a vaidade e o egoísmo.

O Alienista, Cia Complexo de Actoris. Fotografia: Gustavo Gomes.
O Alienista, Cia Complexo de Actoris. Fotografia: Gustavo Gomes.

A base da montagem é o distanciamento. Inicialmente, apresento-me (como ator) e conto uma breve história que ocorreu durante a montagem, logo em seguida termino de vestir o figurino e novamente apresento-me (como a personagem). O espetáculo já se inicia distanciado. Durante o transcorrer das cenas vou conduzindo de uma forma mais narrativa, sem, contudo, perder de vista a personagem que represento. As pessoas da plateia são outros personagens da história. Vou, ao longo da peça, mesclando uma aproximação mais relacionada com o “Sistema Stanislavski”, porém sob uma base distanciada de Brecht. Além disso, algumas pessoas são internadas no manicômio e são partes da encenação, sem perderem a condição de espectadores. O palco então se perde no espaço e tudo se torna algo único, onde não há mais distinção entre o que é ator e o que é plateia. Como a peça aborda a loucura, as pesquisas também beberam um pouco em Artaud. Dessa forma, acredito que Artaud também compõe “O alienista”, até mesmo nessa relação ator-plateia. No processo criativo do monólogo estão presentes Artaud, Brecht e Stanislavski, os quais se complementam o tempo todo. A peça já se inicia mostrando que aquilo é teatro. A perda da ilusão cênica é um ponto de partida. No decorrer das cenas há um jogo entre uma personagem menos distanciada e ora mais distanciada, com o propósito de fazer a plateia enxergar a personagem e o próprio espetáculo, sob um ponto de vista crítico. Tudo isso aliado a momentos mais orgânicos e viscerais que se aproximam do estilo de Antonin Artaud.

Considerações finais

As artes cênicas contêm elementos de imitação, criação, e construção simbólica da realidade social. Dessa forma, antes de pensarmos na técnica do ator, é preciso respeitarmos o ser que ali está, com sua individualidade e sua complexidade humana, sendo que muitas vezes fica até difícil distinguir que espécie de sistema está aplicado ao seu trabalho de construção da personagem. Se dividirmos o trabalho do ator em três estágios, vida cotidiana, estágio pré-expressivo, e estágio expressivo, observa-se que na vida cotidiana o profissional já se utiliza (inconscientemente) de linguagens artísticas.

O estudo tomou como base para a análise técnica as investigações de três diretores do teatro ocidental, quais sejam, Antonin Artaud, Bertolt Brecht e Constantin Stanislavski.

Concluiu-se que não existe uma técnica melhor do que outra e que os procedimentos são complementares. Além disso, o que define a escolha de um ou outro sistema é o respeito à individualidade. Ressalta-se ainda que o ator é uma pessoa construída de racionalidade e pensamentos, bem como de emoções, de sensações, de desejos, de frustrações, de medos e de vontades.

Notas:

[1] Ator (DRT/SP). Nome artístico: Leandro Bertola. Assistente Jurídico no MP-SP. Técnico Ator (SENAC/SP). Bacharel em Direito (UEL). Especialista em Direito Empresarial (PUC/PR). Especialista em Docência do Ensino Superior (FIO). Mestre em Comunicação (UNIMAR).

[2] Antoine Marie Joseph Artaud (1896-1948), poeta, ator, escritor e diretor de teatro francês. Seus estudos e práticas ficaram conhecidos como “Teatro da Crueldade”. Autor da obra “O Teatro e seu Duplo”, publicado em 1935.

[3] Eugen Berthold Friedrich Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta e diretor alemão. Autor de diversas peças, seu estilo ficou mundialmente conhecido como “Teatro Épico”.

[4] Constantin Sergeievich Alexeiev (1863-1938), ator e diretor russo. Autor das obras: A Preparação do Ator, A Construção da Personagem, A Criação de um Papel, Manual do Ator e Minha Vida na Arte.

[5] Para o autor e diretor Eugênio Barba, fundador do Odin Teatret, a forma como desenvolvemos as atividades na vida cotidiana são extremamente diferentes em situações de representação cênica, sendo possível distinguir uma técnica cotidiana de uma técnica extracotidiana.

[6] Brecht aplicou a técnica do distanciamento no Theater Am Schiffbauerdamm, na Alemanha.

[7] Nos estudos e práticas do diretor experimental Richard Schechner verificamos que o sistema gastrointestinal, conhecido como sistema nervoso entérico (SNE) afeta nossas emoções. Além disso, esse sistema possui o seu próprio sistema nervoso, independente do cérebro. Dessa forma, através do esôfago, do estômago, dos intestinos e das vísceras o ator pode entrar, intuitivamente, em estados emocionais.

[8] O monólogo pré-estreou em 2016 na Unesp de Ourinhos. Estreou em 2016 na 8ª Mostra Sérgio Nunes de Artes Cênicas. Foi apresentado na IV Mostra de Teatro de Gavião Peixoto, onde recebeu indicação de melhor direção, melhor ator e melhor iluminação, na Mostra Fênix de Linguagens Cênicas de Tupã-SP, onde recebeu indicação de melhor direção, melhor ator, melhor cenografia e melhor operação de luz, e na 5ª Semana Literária – A representação do negro na literatura produzida por escritores da região sudeste do Brasil da Biblioteca Lydia Frayze. Ficha técnica: Texto: Machado de Assis. Direção e Sonoplastia: Karina Zimmermann. Adaptação, Interpretação e Figurino: Leandro Bertola. Cenário: Karina Zimmermann e Gustavo Gomes. Produção e Fotografia: Karen Madeira e Gustavo Gomes. Iluminação: Aparecido dos Anjos (Neguitinho). Cia Complexo de Actoris.

Referências bibliográficas.

ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BARBA, E, SAVARESE, N. A arte secreta do ator: Um dicionário de Antropologia teatral. São Paulo: É Realizações, 2012.
BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2006.
OSTROWER, F. Universos da arte: edição comemorativa Fayga Ostrower. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
RIZZO, Ê. P. Ator e estranhamento: Brecht e Satanislaviski, segundo Kusnet. São Paulo: Editora Senac, 2004.
SCHECHNER, R. Performance e atropologia. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
STANISLAVKSI. C. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Artigo publicado na Revista Eletrônica Intervalo do Conservatório de Tatuí. Edição número 20. Março/2017.